À
medida que avançamos mar adentro na outrora
crise financeira e atual crise econômica mundial,
mais somos surpreendidos pela criatividade dos governos,
que não apenas opinam sobre políticas
adotadas por outros países, como também
buscam, sobretudo, soluções que vão
no mínimo no sentido contrário ao da
resolução da situação.
São dignos de menção, no Brasil
e fora dele, as ações protecionistas
tomadas pela Argentina e os novos movimentos de estatização
na Venezuela, que levarão para ainda mais longe
qualquer disponibilidade de o já escasso crédito
internacional chegar perto de ambos os mercados.
O assunto da imposição de barreiras
ao comércio, no contexto da crise mundial,
é uma espécie de unanimidade: há
concordância de que, diante da queda vertiginosa
dos fluxos comerciais, fruto das restrições
ao crédito e da redução da demanda,
medidas que discriminem contra o comércio ajudarão
a adiar as expectativas de crescimento da economia
mundial em 2009. No entanto, do mesmo jeito que, se
questionada, a maioria das pessoas diria que o protecionismo
é uma prática negativa, a mesma maioria
teria dificuldades em precisar por que, onde e como
o protecionismo é maléfico. Mostrar-se
contra o aumento das barreiras ao comércio,
como tem sido corretamente a estratégia empregada
por alguns governos - entre eles o brasileiro - e
por instituições internacionais, infelizmente
não impede os países de continuarem
a perseguir os interesses dos produtores nacionais.
Apesar do alarde, o que essa crise tem demonstrado
é que, apesar da enorme evolução
do sistema multilateral de comércio - de 1947,
quando foi realizada a primeira rodada do Acordo Geral
sobre Tarifas e Comércio (Gatt, na sigla em
inglês), até os dias de hoje -, os países
sempre encontram soluções criativas
para buscar formas de proteção que ou
não estão claramente definidas e estabelecidas
nas regras de comércio, ou se aproveitam de
brechas ainda existentes nas regras e necessitarão
de mais algumas rodadas de negociação
para ser fechadas. Falo de países desenvolvidos,
no primeiro caso - com seus pacotes pesados de ajuda
ao setor automobilístico e, por que não
citar, ao financeiro - e dos países em desenvolvimento,
que ainda utilizam instrumentos primitivos como a
imposição de licenças não
automáticas de importação e formas
menos sutis baseadas em puro e simples aumento de
tarifas, prática que tem sido escolhida pelos
asiáticos.
Também se valendo das imperfeições,
por assim dizer, das regras multilaterais de comércio,
os números de 2008 indicam que os pedidos e
a imposição de medidas antidumping cresceram
ao longo do ano. Um levantamento feito por técnicos
do Banco Mundial indica que houve expressivo crescimento
de medidas antidumping no segundo semestre de 2008,
em comparação com o primeiro.
O mesmo levantamento afirma que, excluindo o antidumping,
45 medidas de restrição ao comércio
foram adotadas de outubro de 2008 até fevereiro
de 2009, 12 delas relativas a países desenvolvidos
e concentradas em pacotes de ajuda e subsídios
a agricultores, e 35 em países em desenvolvimento,
predominando a elevação de tarifas,
as barreiras não tarifárias, a proibição
de importações e os pacotes de ajuda
a setores específicos (o estudo pode ser obtido
no endereço http://www.voxeu.org/index.php?q=node/3183).
Não há dúvida, portanto, de que
a redução do comércio mundial
vem acompanhada por usos mais intensos de medidas
de restrição. Diante desse cenário,
caímos na tentação de fazer comparações
com a crise de 1929, especificamente com a promulgação
da Lei Smoot-Hawley, de 1930, que elevou a tarifa
média de importação dos EUA de
38,5% para 53%. Hoje, sabe-se que o aumento das tarifas
norte-americanas não somente levou a uma redução
das importações, afetando os exportadores,
mas também piorou a situação
do mercado internacional de capitais, agravando ainda
mais a crise mundial. A comparação,
é claro, não se aplica - e não
é apenas porque o regime multilateral impõe
tetos para as tarifas, como também porque,
com exceção de nada honrosos casos como
a Argentina, as medidas óbvias de restrição
(aumento de tarifas e uso de licenças de importação),
por enquanto, foram dirigidas a setores específicos,
e não a todo o universo de produtos, como fizeram
os americanos em 1930.
Além disso, as medidas não óbvias,
como pacotes de ajuda a setores específicos
- fazendo uma ressalva ao absurdo aumento nos subsídios
aos agricultores a que hoje assistimos nos EUA e na
União Europeia - são de difícil
mensuração, porque podem desviar o comércio,
levando a um aumento das compras de produtores locais,
mas podem estimular a economia, gerando maiores importações
em setores não cobertos por elas.
Assim, o ímpeto protecionista deveria ser barrado
sobretudo nas medidas que causam óbvias distorções
ao comércio, como aumento de tarifas, uso de
barreiras não tarifárias (as famigeradas
licenças de importação argentinas)
e subsídios aos agricultores. Infelizmente
tais medidas estão, em termos gerais, abrigadas
no arcabouço de regras da Organização
Mundial do Comércio (OMC), permitindo aos países
usufruírem delas sem constrangimento adicional.
E como se não bastasse o fato de que, ou as
medidas estão de acordo com as regras da OMC,
ou oferecem poucas evidências que discriminam
contra o comércio, os países ainda querem
menos proteções para seus produtos de
exportação e mais proteções
para os produtos não competitivos. A solução
dessa matriz de interesses é óbvia:
todos preferem mais proteção.
Assim, embora sejam válidos os esforços
de usar a reunião do G-20 em Londres para reforçar
os malefícios das medidas restritivas ao comércio,
sabemos que os países não abrirão
mão delas. Nosso consolo é que na crise
atual, diferente de 1929, menor comércio é
resultado, e não causa dela.
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