No
conflito que se desenrola na reserva de Raposa-Serra
do Sol, em Roraima, duas mulheres simbolizaram a complexidade
da situação. Em 27 de agosto, no primeiro
dia do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF)
de ações que contestam a homologação
de uma área contínua de 1,7 milhão
de hectares para usufruto exclusivo das tribos, a
índia vapixana Joênia Batista de Carvalho
defendeu com ardor a expulsão dos não-índios
que lá vivem e trabalham. “Estão
em jogo os 500 anos de colonização”,
afirmou, na condição de primeiro indígena
a advogar na Suprema Corte, num testemunho eloqüente
de mobilidade social e integração à
sociedade nacional. Joênia é casada com
um “mestiço” e vive na cidade de
Boa Vista.
O outro símbolo foi a índia macuxi Elielva
dos Santos, entrevistada na vila do Surumu pela TV
Bandeirantes. Elielva acompanhava o julgamento do
Supremo ao lado de outras mulheres igualmente apreensivas,
estampando no rosto e nos gestos nervosos o medo de
terem sua “família desfeita.” Como
fazem as índias desde que Bartira casou com
João Ramalho, no século XVI, Elielva
desposou um camponês egresso do Tocantins e
naturalmente teme que ele seja removido de Raposa-Serra
do Sol, como muitos já o foram. O termo oficial
é extrusão, um galicismo eufêmico
para a velha e clara palavra portuguesa expulsão
ou saída forçada. Dias antes, Elielva
explicara à Agência Brasil porque é
contra a demarcação contínua
e a extrusão de seu marido: “Se a gente
está nessa luta, não é pelos
produtores de arroz, é por nossa família.”
O confronto de Joênia e Elielva escancara a
natureza fratricida do litígio de Roraima.
Não nos cansamos de repetir que ali ocorre
um “conflito no seio do povo”, daí
ser necessário superar o jacobinismo das partes
e buscar uma solução de consenso que
atenda aos interesses de todos os envolvidos.
Este é o desafio levado ao Supremo. Se o Tribunal
tem na pauta uma causa histórica, pela História
deve ser iluminado. Depois do erro do Executivo na
homologação da reserva, está
nas mãos do Judiciário o condão
de evitar que Raposa-Serra do Sol simbolize uma negação
da formação social do Brasil e do caldeirão
étnico em que foi forjado o povo brasileiro.
A essência do conflito de Roraima não
oscila entre o mito do bom selvagem e “seis
arrozeiros”, os quais, diga-se, não se
limitam a meia dúzia de empreendedores, mas
representam a expansão da sociedade nacional
e a vivificação da faixa de fronteira,
e têm o apoio de uma parte dos índios
e de não-índios pés-rapados,
e também do Exército Brasileiro.
No Supremo, o partido da demarcação
contínua-extrusão foi abraçado
pelo relator Carlos Brito, único a votar antes
que o julgamento fosse interrompido por um pedido
de vistas do ministro Carlos Alberto Direito. O voto
do ministro Carlos Brito sinaliza que todo nosso processo
civilizatório não passou de um grande
equívoco. A decidir o Supremo pela demarcação
contínua-extrusão, e tivesse a decisão
o poder de voltar no tempo, estaríamos condenados
a ser uma civilização de caranguejos,
voltada para o litoral e de costas para o Brasil profundo
das terras interiores como advertira Frei Vicente
do Salvador, no século XVII. Casamentos que
deram origem às primeiras famílias genuinamente
brasileiras como a dos portugueses João Ramalho,
Diogo Álvares e Jerônimo de Albuquerque
com as índias Bartira, Paraguaçu e Maria
Arcoverde figurariam na categoria de anomalia antropológica.
Aliás, vale lembrar que o primeiro cardeal
de nossa Igreja, o brasileiríssimo cardeal
Arcoverde, descendia de uma remota avó índia,
tão índia como as que hoje resistem
em Roraima.
Por influência de ONGs, já há
tuxauas em Roraima com rompantes de eugenia, defendendo
a proibição de casamentos interétnicos.
A filosofia de Rondon, baseada em Bonifácio,
exaltada por Gilberto Freire e seguida por Darcy Ribeiro,
era “favorecer por todos os meios os matrimônios
entre índios e brancos e mulatos.” A
justa e necessária proteção do
índio não precisa ter como efeito mecânico
o desamparo dos não-índios. A maioria
destes são caboclos e mulatos arribados para
Roraima no fluxo clássico de ocupação
do território – levando no corpo sangue
de índios, negros e brancos como mostram as
pesquisas do cientista mineiro Sérgio Danilo
Pena.
Para uma solução de bom senso, o primeiro
ponto a considerar é o de que, em nenhuma hipótese,
por nenhum motivo, negue-se terra aos índios.
Que ecoe longe a voz da advogada vapixana Joênia.
Até as pedras sabem, no entanto, que as cinco
tribos de Raposa-Serra do Sol não ocupam uma
faixa contínua de 1,7 milhão de hectares.
Ademais, não formam os indígenas, nem
deles tanto se cobra, uma sentinela geopolítica
da extensa zona de fronteira em que se espalha a reserva.
Ao contrário, como no disparate da pureza étnica,
há quem lhes incuta idéias distintivas
de nação, povo, soberania, autodeterminação.
Foi seduzindo tribos e fincando sua bandeira que,
no século passado, o Império Britânico
abocanhou 19 mil km² do território do
atual estado de Roraima.
Além do retrovisor da História, o julgamento
atrai fatores estratégicos projetados para
o futuro. O aparelho de Estado, de que o Supremo faz
parte, não pode elidir seu papel de “organismo
geográfico”. O clássico vazio
populacional, a fronteira politicamente inerte condensam
uma vulnerabilidade territorial perigosa em Raposa-Serra
do Sol. As tensões do mundo mostram que as
circunstâncias mudaram para ficar semelhantes.
A idéia de que o mapa-mundi está pronto
e acabado é tão duvidosa hoje quanto
na época do Tratado de Tordesilhas. Disso são
indicadores episódios contemporâneos
de secessão, como os de Cosovo e Ossétia.
Fomentados por interesses ultranacionais, demonstram
que a velha partilha do globo, articulada à
disputa por áreas de influência, segue
seu curso com outros nomes e o mesmo rumo.
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