Mineiro de Muriaé, o empresário
Ruy Barreto é um nome que ficou marcado na
história do café no século XX.
Ex-presidente da Associação Comercial
do Rio de Janeiro e da Confederação
das Associações Comerciais do Brasil,
um dos pioneiros na indústria do café
solúvel e um dos sócios mais participativos
do Centro de Comércio do Café do Rio
de Janeiro (CCCRJ), sua atuação política
e empresarial foi decisiva em muitos momentos da história
da cafeicultura e da própria economia brasileira.
"Mas eu sou apenas mais um dos muitos homens
do café, agentes de uma história épica,
que ajudaram a moldar a cafeicultura e o Brasil",
comenta ele. Barreto conta um pouco dessa história
"que ainda precisa ser contada de verdade",
sobre a saga cafeeira no Brasil, e rememora momentos
importantes de sua vida profissional e da atuação
do CCCRJ.
CCCRJ - O senhor vem de uma família
que já trabalhava com café. Toda a sua
formação está ligada a café?
Isso influenciou seus rumos profissionais?
Ruy
Barreto - Meu pai era um pequeno comerciante
de café do interior do Minas, de Muriaé,
e eu, com 13 anos, já era classificador de
café. Aos 16 anos, já morando no Rio,
eu era despachante, providenciando a liberação
de documentos e conferindo os embarques e desembarques
de café na estrada de ferro e depois preparando
a documentação para exportação.
Fiquei trabalhando com isso uns três anos e
foi uma grande experiência, porque vi de ver
de perto como funcionava toda a burocracia que envolvia
a exportação do café. Para se
ter uma idéia: fosse para exportar apenas uma
ou 1 milhão de sacas de café, se levava
cinco dias para preparar toda a papelada. Por exemplo,
a documentação para embarcar uma saca
de café levava 180 carimbos e mais de 200 assinaturas.
CCCRJ
- Sempre foi assim? Em que época o senhor trabalhou
com o desembaraço de café?
Ruy
Barreto - Isso foi na década de 40
e as exportações na época eram
feitas dessa forma. Tive uma atividade intensa nessa
área e pude conhecer todas as dificuldades,
assim como o cais do Porto do Rio, em seus mínimos
detalhes. Com essa experiência que adquiri,
acabei abrindo minha primeira empresa, que hoje é
a minha holding, a Companhia São João
de Armazéns Gerais.
CCCRJ
- Nessa época o porto do Rio ainda
era um grande porto exportador de café ou já
se sentia a queda no movimento?
Ruy
Barreto - Justamente quando eu entrei nesse
mercado, em 1948, o café já tinha iniciado
sua decadência como produto exportador pelo
porto do Rio. Ou seja, já perdia para Santos
e outros portos e com o desenvolver da minha atividade
comecei a sentir a queda desse movimento. Com isso,
meu negócio não ia muito bem. Meu pai,
então, arranjou um emprego para mim na torrefação
da qual tinha se tornado sócio, a Café
Palheta. Fui trabalhar na casa de café da empresa,
na Rua Sete de Setembro com a avenida Rio Branco.
Enquanto isso, continuei também com o meu próprio
negócio, no armazém de café,
e foi ainda nessa época que conheci o empresário
Rui Gomes de Almeida, que foi uma das maiores lideranças
empresariais do País. Ele me deu um apoio muito
grande e eu fui ser diretor da Associação
Comercial do Rio de Janeiro na época em que
ele era vice-presidente da entidade.
CCCRJ - Passar a fazer parte dessa
Associação, da qual o senhor posteriormente
também foi presidente, mudou de alguma forma
sua trajetória profissional? A sua experiência
anterior no café, seja na exportação,
seja junto ao consumidor interno, ajudou nesta nova
fase?
Ruy
Barreto - Sim, porque eu passei a ter contato
e a participar das discussões dos grandes problemas
brasileiros. E minha experiência, sem dúvida,
balizou minha atuação também.
Entre 1956 para 1957, o governo de Juscelino Kubitschek
lançou como uma de suas metas principais o
programa "Exportar é a solução".
E era claro que a única forma de aumentar as
exportações rapidamente era acabar com
aquela burocracia massacrante. Ao saber disso, o presidente
Juscelino fez uma reunião com as autoridades
e vários empresários e líderes
do País, comprometendo-se a promover um processo
de desburocratização das exportações.
Após falar, ele deu a palavra à platéia
e, para surpresa de todos, um grande exportador, Júlio
Poetche, se levantou e disse: "Excelência,
eu acho que vou pedir ao senhor que, pelo amor de
Deus, não faça nada, porque, toda vez
que o presidente promete acabar com a burocracia,
surge sempre um novo documento para complicar ainda
mais as coisas. Então deixa como está,
porque, pelo menos como está, nós já
conhecemos". Bom, aquilo foi um escândalo.
Foi manchete em todos os jornais no dia seguinte e,
com isso, o presidente Juscelino sentiu a gravidade
real do problema e pediu para o ministro Lucas Lopes,
da Fazenda, tomar providências imediatas. O
ministro, no dia seguinte, convocou todas aquelas
25 repartições, mais os respectivos
ministros ligados ao problema, para discutir a questão.
Eu fui representando o Rui Gomes de Almeida, que já
era presidente da Associação Comercial
do Rio de Janeiro. O ministro, então, perguntou
o que eu achava que deveria ser feito e sugeri que
fosse pedido a cada um dos 25 representantes das repartições
que trouxesse o diploma legal, que dá a cada
repartição ou Ministério poder
para interferir na exportação. Para
resumir, o resultado foi que, por determinação
da Presidência da República todos aqueles
órgãos foram extintos e se criou um
documento único que é a guia de embarque,
e até hoje existe. E com isso o que levava
cinco dias para fazer agora levava meia hora.
CCCRJ
- E a questão do fim do subsídio
ao consumo interno?
Ruy
Barreto - Esse é um outro fato importante.
O governo vinha subsidiando o mercado interno brasileiro
para reduzir a dependência da exportação.
O Brasil, apesar de ser o maior produtor do mundo
no final da década de 50, era o 17º em
consumo per capita, o que não tinha o menor
sentido. Afinal, estávamos lutando para abrir
novos mercados quando tínhamos aqui dentro
um potencial enorme. Por isso havia esse subsídio,
até porque foi também nessa época
que o Brasil havia tido a maior superprodução
de café da sua história, e uma solução
era aumentar o consumo interno. Em quatro ou cinco
anos, o consumo aumentou de 2 milhões para
8 milhões de sacas, o que possibilitou que
o País se visse livre de parte daquele estoque
enorme. Esse programa durou 13 anos e significou o
consumo de 90 milhões de sacas. O problema
é que quando ocorreu a Revolução
de 64 houve uma campanha para acabar com subsídios
como esse, que eram considerados inflacionários.
CCCRJ
- Mas não haveria outro tipo de custo, com
a queda desse subsídio, já que os estoques
iriam aumentar novamente?
Ruy
Barreto - Claro, o Brasil ainda dependia
muito das exportações. E o jeito seria
estocar esse café excedente, com um custo para
o governo. E ao mesmo tempo o governo, baseado nessa
política "realista", noticiava que
havia um excesso de produção de açúcar
de 3 milhões de sacas no Estado de São
Paulo. O Ministro da Indústria e Comércio
estava lutando para que o governo comprasse esse excedente,
porque o preço do açúcar estava
caindo. Mas o governo não queria comprar, alegando
que seria um fator inflacionário. Então,
de um lado, eles acabavam com o consumo interno de
café e, de outro, tínhamos um excedente
de açúcar. Eu li isso nos jornais e
fui falar com o Roberto Campos, que na época
era o ministro da Fazenda. Mostrei a ele que, se o
consumo de café estava em 8 milhões
de sacas e ia baixar para 4 milhões haveria,
em conseqüência, uma queda no consumo de
açúcar de mais 8 milhões de sacas.
Ou seja, o excedente de açúcar iria
para 11 milhões de sacas. Ele achou o raciocínio
absurdo. Pedi para chamar o encarregado da cantina.
Veio o seu Antônio, e perguntamos quanto ele
consumia de café e açúcar. Ele
nem pestanejou. Disse que para cada quilo de café
tinha que comprar dois de açúcar. Resumo
da história: o governo voltou atrás
e aumentou o subsídio para o café, porque
viu que iria ficar muito mais caro ter que comprar
aquele açúcar todo.
CCCRJ
- O senhor é um homem que sempre viveu dentro
do mundo do café. Como o senhor analisa essa
história e sua importância para o Brasil?
Ruy
Barreto - Eu acho que a história do
café ainda tem que ser contada. E ela tem que
ser contada por pessoas que procurem analisar o café
como fator de emprego, de desenvolvimento, pela sua
importância internacional. No caso do Brasil,
na minha opinião, podemos marcar a história
do café como a história do Brasil. Para
mim, o Brasil foi "descoberto" a partir
do momento em que começou a exportar café.
Se nós analisarmos bem, concluiremos que antes
éramos uma colônia, inviável economicamente.
Houve o ciclo do ouro, mas que reverteu em riqueza
para Portugal e não para o Brasil. Mas, na
verdade, houve um grande benefício nisso tudo,
que foi o fato de Portugal ter, por causa disso, mantido
intacta essa nação até 1800.
Com, e por causa, desse ouro, Portugal pagou a proteção
das nossas costas das outras nações.
Foi quando surgiu o bloqueio imposto por Napoleão.
Na época, a Europa já era uma grande
consumidora de café e a Inglaterra é
que abastecia aquele continente, comprando de colônias
como Haiti, República Dominicana e também
de Java, que hoje é a Indonésia. Os
ingleses eram os grandes comerciantes da época.
Mas o bloqueio acabou com o comércio. Aí
aconteceu o seguinte: os turcos passaram a adquirir
o café que havia no norte da África,
na Etiópia e outros locais, e começaram
a abastecer, via contrabando, o mercado europeu. Ao
mesmo tempo, muitos fazendeiros, que quebraram nas
colônias que vendiam para a Inglaterra, começaram
a vir para o Brasil e começaram a plantar aqui
mesmo no Rio, no Alto da Boa Vista, para vender para
os turcos que, por sua vez, revendiam para a Europa.
Foi assim que o Brasil entrou no mercado internacional.
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